DRAGÕES*
A vinda do velho Liu à pequena cidade foi a melhor coisa ocorrida nos últimos
anos.Amigo e conselheiro logo conquistou aos adultos e com a sua docilidade
cativou especialmente as crianças.Todos os dias saía de casa levando debaixo do
braço um surrado saco de couro.Caminhava até um lugar afastado onde havia uma
árvore cujo nome ninguém lembra e ficava ajoelhado debaixo da sombra,começava
então a recitar uma estranha ladainha composta por longas frases permeadas por
espaços de atordoante e infinito silêncio.
Muitos ao vê-lo assim
monologando cochichavam,viam comprovadas todas as suas suspeitas.Muitos o
julgavam louco ou idiota.Mas tudo se tratava apenas de um ritual elaborado pelo
espírito de um velho solitário talvez inconscientemente cúmplice dos que lhe
atribuíam uma certa excentricidade,ansioso apenas por poder desfrutar ao máximo
os momentos proporcionados por tão feliz estado.
A insistência porém logo
o fazia desistir da sua intenção.Como permanecer indiferente aos pedidos dos
pequenos e dos maiores comovidos por vê-los tristes nas raras vezes em que Liu
sem dar ao menos uma justificativa se recusava?
Logo o cercavam
acotovelam-se para o ver trabalhar.Tirava então várias folhas de papel colorido
e um grande carretel da velha sacola e do bolso da sua bata um toco de lápis com
uma lasca de madeira presa ao corpo usada como lâmina.
Embora a montagem
de uma pipa seja algo banal assumia ali a aura do inusitado, todos eram levados
a crer nisso por sua fama de manusear o papel como o oleiro faz com a
argila.Paciente e preciso realmente fazia dele a extensão da sua vontade.De
forma própria as suas mãos de artífice,mãos longas e finas e a sua mente repleta
de ideias resguardadas por uma névoa impenetrável.Ainda mais oculto era o
significado dos versos sussurrados em companhia das crianças,estranhas canções
oriundas de terras distantes e pronunciadas em língua ininteligível.
Os
mais entusiasmados entre os espectadores corriam para procurar varetas de
bambu.Os demais se divertiam tentando adivinhar a provável forma da próxima
pipa.Era muito comum acertarem pois havia claramente certa correspondência entre
as cores e o animal a ser representado.O papel preto ou pardo tomaria a forma de
um gato ou de um cão,o azul e o amarelo logo se transmutavam em grandes
pássaros,e o verde e o vermelho em peixes.Curiosamente todos ignoravam a
utilidade do grande rolo de linho branco visto muitas vezes suspenso sobre a
cabeça de Liu na copa da grande árvore.
Já próximo ao fim da tarde o
vento forte atirava a poeira da estrada nos olhos dos viandantes e dava força,lançava no ar as atrevidas criaturas de papel tal espetáculo poderia facilmente
convencer alguém da existência dos antigos deuses que tinham os céus por
morada.
A noite chegava e as pipas eram então puxadas de volta e
recebidas como espíritos privilegiados por terem se tornado a expressão visível
da felicidade.Satisfeito ele partia,caminhando sozinho na direção oposta dos
pequenos companheiros de brinquedo.
Quando desejavam falar com ele os
mais velhos o aguardavam em frente à sua casa e tão logo chegava se lançavam na
sua direção isso costumava acontecer quando necessitavam de ajuda para tomar
qualquer decisão importante para o povoado,isso o fazia se sentir vaidoso e
reconfortado como se tivesse sido acariciado pela brisa no calor
verão.
Mas nesta noite não o aguardava nenhuma alegria.Já frente às suas
portas alguns não se contentavam em gritar,caminhavam sobre os canteiros do
jardim esmagando as folhas caídas,amarelas,repletas de sol,e os pequenos
arbustos.Estava muito frio os ossos lhe doíam mas ele sorria e ao se aproximar
dos visitantes ignorando tudo os cumprimentou como de costume.Sem nenhum motivo
aparente o atacaram.Uma chuva de golpes caiu sobre o seu corpo,perplexo não pôde
pensar sequer numa forma de escapar.Apenas a lembrança persistente das outras
vezes em que os recebera com a sua cortesia humilde os fez desistir de o matar
ali mesmo.Foi levado até um antigo estábulo usado como prisão,lá o jogaram sobre
um monte de feno.
Mal amanhecera Liu ergueu-se e caminhou até onde havia
uma pequena fresta na parede por onde passava um filete de luz branca,encostou o
rosto nela e conseguiu ver a praça do mercado.Tal visão servia como único
consolo e maior suplício dos prisioneiros,os levava a pensar no passado e os
vergava diante do futuro incerto mas para ele tudo se tornara indiferente muito
pior do que a sensação de eterno presente era não encontrar a causa para tudo
isso.
- Velho.Esse chamado vindo do outro lado da cela o despertou desse
estado de contemplação quase sonambulismo.-Consegue me ouvir?O outro se
aproximou e lhe deu uma pequena tigela cheia de água,ele a tomou e bebeu
ávido.-Teve muita sorte pelo menos ainda pode ficar de pé.
Continuava
calado,estava assombrado com as marcas dos golpes que recebera."Não me deixarão
jamais me feriram até a alma".Seu companheiro de cela como se pudesse ouvir
falou.-Eu mesmo já passei por isso muitas vezes e posso mostrar o quanto ainda
teremos de suportar.
Tirou então a camisa deixando à vista marcas
semelhantes aos sulcos cavados na terra pelo arado.Não deveria existir forma por
mais extrema de desejo de justiça ou vingança incapaz de se mortificar diante
disso,no rosto tinha estampada a mais bizarra forma de orgulho deixando claro
que tal esforço em nada contribuiu para o tornar mais dócil.Wang,era como se
chamava,desejou perguntar a Liu o motivo de sua prisão mas logo viu não ser
necessário percebeu tratar-se de um inocente,tal homem não seria capaz de fazer
mal a alguém e muito menos se dar ao luxo de ter inimigos.
Há muito se
passara a hora da primeira refeição,a fome porém não os incomodava o
verdadeiramente cruel era a expectativa principalmente para Liu ignorante da
rotina a que deveriam ser submetidos.Já devia ser meio-dia,dois guardas se
colocaram frente às grades e o chamaram.Ele se aproximou,abaixou-se e apanhou o
prato de sopa passado por uma fresta.Aproveitando-se disso acertaram em
cheio seu rosto com um pontapé num instante porém se levantou encarando seus
algozes.Tinha de se mostrar forte.Os guardas surpresos por tal atitude
resolveram ir embora e o deixar em paz.
No sexto dia passado no cárcere foi acordado a golpes de
vara.Reconheceu entre os agressores um dos magistrados locais,pela primeira vez
ficou verdadeiramente espantado e aflito.O que alguém de tamanha importância
estaria fazendo ali?Sem poder comer ou mesmo lavar-se foi escoltado de volta à
sua casa.Teria de ir a pé com uma pesada pedra amarrada na cintura.Cansado de
carregar pois a arrastar como ordenaram seria pior tornando a marcha ainda mais
lenta ele a soltava ou a deixava simplesmente cair,os soldados embora soubessem
ter a obrigação de o livrar da carga ao perceber não ser ele capaz de tal
esforço ao invés de ajudar o lançavam ao chão.
Chegando Liu quase
desfaleceu.As árvores haviam sido cortadas,o jardim estava arruinado e até as
gaiolas,portas e janelas da casa jaziam no chão despedaçadas.Lá dentro não havia
mais nada tudo tinha sido roubado a não ser um pouco de linho e uma caixa onde
ainda restavam barbante e lápis surpreendentemente lhe permitiram os levar
consigo.
Somente agora soube que o acusavam da morte do filho de uma
autoridade da região.Como de forma inequívoca tudo depunha contra ele seria
executado em poucos dias.Foi levado de volta até ali apenas para um
interrogatório sumário,não se tratava de um julgamento mas apenas de uma forma de se
saborear a vingança.Nada soube responder ao lhe perguntarem sobre as manchas de
sangue no chão e nas paredes caiadas.O jovem fora degolado e a arma do crime
seria o velho facão enferrujado encontrado num dos cantos da casa.Retornavam
agora.Em redor logo se formou um pequeno cortejo.Alguns curiosos,uns poucos a se
lamentar e muitos culpados.
Naquela província havia um homem conhecido por sua crueldade
para com os pobres era o cobrador de impostos para ele não importava a difícil
situação dos camponeses,como ave de rapina se precipitava sobre todo o grão e
toda a prata**.Ora isso provocou o povo até o limite da sua resignação e cansados
de serem tratados como animais passaram então a conspirar.Mas a pena pela
acusação de tramar contra alguém tão poderoso desencorajava mesmo os mais
valentes imagine então realizar tal intento.Um terror quase supersticioso tomava
os corações daquela gente.Dentre todos eles o mais ardiloso,a intriga e a
infâmia também prosperam entre os humildes,os convenceu a escolher outra vítima
e para terem certeza da impunidade seria preciso eleger alguém como bode
expiatório.Estava decidido então.Matariam o filho do seu inimigo,este costumava
frequentar a casa de Liu cuja fama já se propagara muito além da pequena
cidade.Vê-se agora, o seu dom foi a sua ruína.
Seriam executados na manhã seguinte,Liu simplesmente sorria ao
ouvir qualquer alusão a isto.Já Wang estava intrigado com a atitude do
amigo.
-Você é estranho,estamos para morrer e consegue sorrir assim sereno como uma criança.
-Tem então alguma ideia?
-Não e nem você.Não há meio de escapar e criminosos como nós nunca podem esperar por clemência.Desculpe Liu acredito em sua inocência mas os fazer voltar atrás agora é inútil como suplicar pela piedade de um tigre.
-Sabe como se dá caça aos tigres Wang?
Julgando Liu aflito a ponto de dizer coisas sem sentido ele preferiu o silêncio.
-Quando o Filho do Céu*** resolve tornar menos tediosos os seus dias sempre tomados pelo cerimonial e pelo peso de tantas funções vai ao campo levando consigo muitos homens.Caçadores portando armas de fogo ou arcos e ainda outros com tochas mas todos eles são inúteis sem os encarregados pelos grandes rolos de linho.Os atiradores são apenas uma garantia contra qualquer ataque súbito,matar ainda mais a tiros uma presa tão rara e cobiçada seria indigno e tão secundário quanto o destes é o papel dos portadores das tochas.Os homens do linho tem à mão largas e compridas faixas desse tecido especial e com ele tão logo encontram local adequado,geralmente uma clareira,armam uma emboscada estirando quatro delas no solo formam um grande quadrado ao qual se segue outro e outro e mais outro.Enquanto isso os demais afugentam o tigre na direção dos captores.A presa logo se aproxima,então usando de cordéis elevam os lados da armadilha.A fera recua mas as faixas suspensas formam uma espécie de caixa e a cada tentativa de se libertar consegue apenas se internar ainda mais no labirinto.
Wang balançava a cabeça incrédulo e de lábios entreabertos ameaçou dizer algo,Liu o impediu.
-Aí você me dirá que é apenas tecido quase tão frágil como o papel.O tigre porém ignora a natureza das muralhas e julga estar encerrado entre paredes espessas e intransponíveis,algumas vezes tenta resistir rugindo ou rodopiando em torno de si mesmo desesperado mas não ousa contudo se lançar contra elas que se aproximam e o envolvem,assim derrotado se deixa apanhar facilmente.
-Liu...
-Me tomam por um velho incapaz...Serão surpreendidos como o homem ao acordar no campo e que sozinho se depara com a morte serão esfolados sem poder oferecer a menor resistência.
-Você é estranho,estamos para morrer e consegue sorrir assim sereno como uma criança.
-Tem então alguma ideia?
-Não e nem você.Não há meio de escapar e criminosos como nós nunca podem esperar por clemência.Desculpe Liu acredito em sua inocência mas os fazer voltar atrás agora é inútil como suplicar pela piedade de um tigre.
-Sabe como se dá caça aos tigres Wang?
Julgando Liu aflito a ponto de dizer coisas sem sentido ele preferiu o silêncio.
-Quando o Filho do Céu*** resolve tornar menos tediosos os seus dias sempre tomados pelo cerimonial e pelo peso de tantas funções vai ao campo levando consigo muitos homens.Caçadores portando armas de fogo ou arcos e ainda outros com tochas mas todos eles são inúteis sem os encarregados pelos grandes rolos de linho.Os atiradores são apenas uma garantia contra qualquer ataque súbito,matar ainda mais a tiros uma presa tão rara e cobiçada seria indigno e tão secundário quanto o destes é o papel dos portadores das tochas.Os homens do linho tem à mão largas e compridas faixas desse tecido especial e com ele tão logo encontram local adequado,geralmente uma clareira,armam uma emboscada estirando quatro delas no solo formam um grande quadrado ao qual se segue outro e outro e mais outro.Enquanto isso os demais afugentam o tigre na direção dos captores.A presa logo se aproxima,então usando de cordéis elevam os lados da armadilha.A fera recua mas as faixas suspensas formam uma espécie de caixa e a cada tentativa de se libertar consegue apenas se internar ainda mais no labirinto.
Wang balançava a cabeça incrédulo e de lábios entreabertos ameaçou dizer algo,Liu o impediu.
-Aí você me dirá que é apenas tecido quase tão frágil como o papel.O tigre porém ignora a natureza das muralhas e julga estar encerrado entre paredes espessas e intransponíveis,algumas vezes tenta resistir rugindo ou rodopiando em torno de si mesmo desesperado mas não ousa contudo se lançar contra elas que se aproximam e o envolvem,assim derrotado se deixa apanhar facilmente.
-Liu...
-Me tomam por um velho incapaz...Serão surpreendidos como o homem ao acordar no campo e que sozinho se depara com a morte serão esfolados sem poder oferecer a menor resistência.
Manhã.Assim como estavam foram levados para o pátio.A cela
ficara vazia a não ser pelo linho retalhado e pelo monte de palha.No cadafalso
os condenados trocaram um último olhar,todos na multidão esperavam os ouvir
implorar isto geralmente divertia o público que costumava até pagar para assistir as execuções e as chicotadas dos carrascos empregadas
para os fazer calar eram uma preliminar do espetáculo aguardado.Eles nada
disseram estavam firmes e Wang mais atrevido chegou mesmo a assobiar causando
temor em alguns por ser esse um mau presságio.
Súbito não sentiam mais o solo sob os seus pés e ao contrário do costume logo que os corpos penderam presos nas cordas os carrascos pularam em seus ombros num procedimento conhecido entre eles por cavalgada,os gritos de euforia se faziam ouvir novamente.Agora no chão puxaram para trás os longos cabelos das vítimas e cortaram as suas gargantas.Para impressionar as autoridades presentes resolveram esquartejar os corpos ali mesmo,numa dança macabra deceparam as cabeças dos prisioneiros com os facões e os desmembraram.Mas logo ficaram assombrados com o fato de não haver sangue,eram como os bonecos de argila feitos para as crianças e assim como eles se transformaram em pó.O medo tomou a todos logo não havia mais ninguém na praça.
Ainda maior foi o horror sentido pelos guardas da carceragem.Uma espessa e fétida névoa negra tomou conta do local,viram então emergir da antiga cela de Liu duas bestas com garras e presas enormes,chifres bifurcados e corpo de serpente que fugiram rompendo as grades.
Logo a notícia se espalhou pela província no princípio sem muito crédito pois tais histórias eram tão comuns quanto mentirosas.Restava apenas o inexplicável desaparecimento de várias pessoas naquela e em outras cidades deixando aflitas muitas famílias.Não se podia vislumbrar impunemente o terror provocado por aquelas duas nuvens negras no céu mensageiras de vida e morte a pairar sobre os campos deixando o seu rastro de sombra nos arrozais.
Súbito não sentiam mais o solo sob os seus pés e ao contrário do costume logo que os corpos penderam presos nas cordas os carrascos pularam em seus ombros num procedimento conhecido entre eles por cavalgada,os gritos de euforia se faziam ouvir novamente.Agora no chão puxaram para trás os longos cabelos das vítimas e cortaram as suas gargantas.Para impressionar as autoridades presentes resolveram esquartejar os corpos ali mesmo,numa dança macabra deceparam as cabeças dos prisioneiros com os facões e os desmembraram.Mas logo ficaram assombrados com o fato de não haver sangue,eram como os bonecos de argila feitos para as crianças e assim como eles se transformaram em pó.O medo tomou a todos logo não havia mais ninguém na praça.
Ainda maior foi o horror sentido pelos guardas da carceragem.Uma espessa e fétida névoa negra tomou conta do local,viram então emergir da antiga cela de Liu duas bestas com garras e presas enormes,chifres bifurcados e corpo de serpente que fugiram rompendo as grades.
Logo a notícia se espalhou pela província no princípio sem muito crédito pois tais histórias eram tão comuns quanto mentirosas.Restava apenas o inexplicável desaparecimento de várias pessoas naquela e em outras cidades deixando aflitas muitas famílias.Não se podia vislumbrar impunemente o terror provocado por aquelas duas nuvens negras no céu mensageiras de vida e morte a pairar sobre os campos deixando o seu rastro de sombra nos arrozais.
*Da coletânea de contos "Noites Insones" de Jonas Nascimento.
**O antigo sistema monetário chinês tinha esse metal como principal referência.
***Filho do Céu:Um dos títulos conferidos ao imperador na antiga China,ressaltava o seu caráter e ascendência divina.
Inacreditável cara adorei o conto e a parte da caçade é de babar boa sorte pra você e seus amigos.
ResponderExcluirTaí um Grande Dom!!!!
ResponderExcluirmuito bom eu nunca vou me esquecer do diálodo entre Liu e Wang
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